O Inverno está aqui, e com ele, a Senhora do Submundo chegou ao seu trono. Ataegina é um mistério, com as suas muitas facetas. Dizer que ela é apenas uma Deusa dos mortos é uma desfeita à sua multiplicidade divina. Conseguimos encontrar nesta Deusa uma familiaridade relativa a todas as outras mitologias, e a mais provável de carregar nos seus ombros a tão importante representação dos ciclos da vida e da morte no paganismo.
No Iseum dos Limites da Lua, não veneramos Ataegina simplesmente como uma Rainha do Submundo, apesar dessa ser a sua principal função na hierarquia e organização do domínio divino. Veneramos a jornada de Ataegina em si, todas as suas faces nesta jornada e a forma como esta redefine, desafia e ultrapassa os limites que conhecemos - não de forma muito diferente a como são veneradas Deusas como Persefone ou Inana. É pertinente mencionar que o epiteto invocado neste espaço é o de Ataegina Invicta, a invencível, a que resiste - isto, porque as nossas visões sobre a sua natureza cíclica e liminal são à volta dessa mesma resistência e da ideia de transições como forma de renascer.
Nesta reflexão sobre Ataegina, vamos abordar as três faces que nos são reveladas dentro do Iseum: A Donzela, a Morta e A Rainha. Um desenvolvimento sobre a ideia de Deuses com três facetas e a ideia do tríplice também é necessário, e ficará para futuros artigos, pelo que peço que guardem as dúvidas por agora e aceitem para o fim deste texto estas três faces. Vamos tentar fazer uma revelação de como estas transformam de uma para outra e do que estas simbolizam. Esta revelação não é verdade única, claro, apenas uma de muitas possíveis visões desta Senhora tão misteriosa. Haverá um foco no conceito do descer, pela estação atual, pelo que outras jornadas ou possíveis dinâmicas com outras Divindades também ficarão para visões futuras.
As Estações
Um dos epítetos e comparações mais famosas de fazer com Ataegina é o de Proserpina. Proserpina - ou na perspetiva grega, Persefone - é a Deusa filha da Deusa da fertilidade e agricultura, raptada pelo Deus do Submundo para ser sua Rainha. A sua história principal vem do Hino a Demeter contido nos Hinos Homéricos - na qual a Deusa Demeter faz o luto pela sua filha enquanto a procura, não permitindo que nada cresça. Isto traz um inverno eterno à Terra, apenas solucionado com a devolução de Persefone à sua mãe, não sem um senão. A jovem Deusa come seis gomos de romã dadas por Hades, e assim, tem de passar seis meses no Submundo e seis meses na superfície. Fica imortalizada esta metáfora para o ciclo das estações e o ciclo da semente.
Não temos a certeza do aspeto em que Ataegina seria sincretizada a Proserpina. Poderia ser apenas como Deusa do Submundo, ou podia ser apenas como Deusa jovem da vida. No entanto, os romanos tendiam a ser bastante literais com os seus sincretismos, pelo que podemos fazer a forte hipótese de Ataegina ter um mito semelhante - ou até igual - a Proserpina. A única forma de obter este conhecimento de momento, é através de visões espirituais.
Ataegina é os ciclos. Ela é a passagens das estações. Ela é a semente. É aquela que desce para debaixo da terra e volta todos os anos. Conseguimos vê-la neste estado de semente, Donzela jovem e ingénua, num jardim pronto para acolher a sua vida. Enquanto está neste estado de semente, traz a esperança, uma representação física que a vida e a alegria são possíveis. O Deus que faz o papel semelhante a Demeter é misterioso ainda, mas também será descoberto. O seu símbolo ser a cabra também é algo a adicionar na nossa meditação. Poderá ela ser uma guardadora de cabras quando está neste jardim da vida? Ter a sua origem numa cabra, apelando a influências mais celtas de Deusas nascidas de animais sagrados? A própria cabra é um símbolo de esperança, de sobrevivência, do saber que se terá sustento no fim do dia.
Como todos os ciclos, algo mau tem de acontecer. Algo inevitável. Ataegina tem de descer, e completar o ciclo da vida que leva à sua morte. Sabemos que existe uma Ataegina da superfície, da vida, e uma Ataegina do submundo, da morte. São os detalhes entre uma e outra que foram perdidos.
O Descer
Tal como a semente é enterrada, Ataegina também tem de passar pelo seu Outono. Mas como se sucede a morte de Ataegina? Honramos a faceta de Ataegina Morta, mas é ela morta de forma literal ou figurativa? Será raptada como Proserpina, ou escolherá ela mesma descer? Na nossa visão do Iseum dos Limites da Lua, aproveitamos o potencial sincretismo de Ataegina a Santa Luzia. As práticas populares não devem ser ignoradas. Na lenda de Santa Luzia esta é torturada com o fim de negar a sua fé, mas resiste a tudo o que lhe é infligido. Primeiro, tentam leva-la para uma casa de prostituição, mas os seus pés são como raizes agarrados ao chão (uma descrição muito curiosa quando consideramos sincretismos a Deusas da natureza). Depois tentam queimá-la, mas ela fica apenas com a pele avermelhada. Arrancam-lhe os olhos, e ela cresce dois olhos novos. Finalmente, matam-na através de decapitação. Alguns recontos populares do martírio desta Santa adicionam outros métodos de tortura - se bem que esta não é a palavra ideal, visto que Luzia encara estas tentativas que a trazer à morte com uma indiferença própria apenas de uma Deusa do submundo. Nas práticas populares é chamada para curar o mau-olhado, curar a visão ou permitir ver aquilo que nos é escondido.
O epíteto de Ataegina Invicta apela a esta indiferença repetida às tentativas de execução. Podemos pensar que Ataegina é invencível por renascer depois da morte, mas e se ela for invencível até se descobrir uma forma de ela morrer? Os arquétipos de Santas que sobrevivem à morte tendem a ser uma metáfora para ser impossível castigar aqueles que não fizeram o mal, e de ser impossível matar a esperança. Seria apropriado para uma Deusa que sabemos ser castigadora na sua faceta do Submundo, primeiro sobreviver a castigos indevidos, demostrando o seu direito a decidir a justiça dos outros. Também podemos pensar que quem leva as pessoas ao submundo simplesmente se recusa a levá-la, o que pode incorporar o Deus Endovélico, igualmente misterioso, na sua descida.
Na nossa visão, olhamos para esta lenda e para a natureza. Quando a estação fria chega, não é de uma vez só. O frio chega lentamente. A natureza volta para o solo aos poucos. Existe esta necessidade de sobreviver, não só das pessoas, como de tudo à nossa volta. Ataegina reflete a resistência. A morte é natural, mas isso não significa que seja desejada. Ataegina cai apenas quando a ultima folha de outono cai. Poderá haver tentativas literais de matar Ataegina, mas ela não vai calada. Ela sobrevive, resiste e cresce no seu poder Divino, não mais uma Donzela. Mesmo quando Morta, Ataegina resiste, e aceita a transição para algo novo.
O Trono
Ataegina é Rainha. É a Dona inquestionável do Submundo ibérico. A ideia de Ataegina sentada no seu trono vem da sua associação - mais ou menos fundamentada - à estátua da Dama de Baza. Temos uma Deusa velada, Senhora de si mesma e de todos aqueles que julga no pós vida. No entanto, resta-nos ter uma visão da transição de Morta para Rainha. Como vai esta Deusa resistir à morte para renascer como Dona dela? Podemos tomar de novo a interpretação de Proserpina, em que esta ganha o título de Rainha do Submundo por casamento. É muito comum ver a comparação direta Proserpina-Plutão com Ataegina-Endovélico, exatamente por sabermos que estes Deuses teriam uma conexão e culto conjunto inegável. No entanto, sendo Endovélico também um Deus da vegetação e cura, esta comparação, que dá um papel passivo a Ataegina, tem algo de incompleto.
Olhamos para outra possível entidade Divina que poderá ter tido influência em Ataegina. Inana é a Deusa da fertilidade da Suméria que desce ao submundo, e depois encontra-se sem possibilidade de sair dele sem uma troca. Perante isto, o seu marido, Deus pastor, Dumuzi, fica no seu lugar. Inana e a irmã de Dumuzi, a Deusa da vinha, Gestinana, seguem o luto e desejam que o Deus volte, concordando que Gestinana fique no Submundo metade do ano e Dumuzi a outra metade. Este mito é também uma metáfora para o ciclo da semente e das estações, como o de Persefone. Ficamos de novo com a questão de quem poderá fazer qual papel, mas temos uma visão mais ativa que um casamento. Uma escolha, de um Deus ficar metade do ano, e outro Deus na outra metade. Ataegina é Rainha do Submundo no Inverno, e Donzela do prado no Verão.
Outro mito de Inana que serve de metáfora para as estações e pode trazer-nos visão de uma natureza ainda mais ativa de Ataegina: no mito que observa o ciclo das estações no céu, Inana decide conquistar Eanna, o templo do seu pai nos céus, e consegue. Ataegina tal igual poderá ter um caráter de conquistadora, e marcar através do seu poder o seu lugar entre os Deuses. Temos ainda um mito em que Inana tem um trono esculpido de uma árvore. A importância da imagem do trono e da ideia de reinarem ativamente em Deusas que simbolizam as transições da vida é uma que vemos para Ataegina. Ela é Rainha por si mesma, e como consequência das suas escolhas e vontades após ser confrontada com o ciclo inevitável da vida.
A jornada de Ataegina não acaba aqui. Tal como desce, tem de subir, e de certo outras figuras divinas e liminais têm papeis na sua história. Deixamos essas visões para a primavera, ficando agora com Ataegina sentada no seu trono, mais velha, mais sábia, transformada pelos ciclos da vida como todos nós somos.
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